terça-feira, 10 de outubro de 2017

Gatos, crianças e despedidas. Sobre sempre falar a verdade

Um gato e uma menina que me ensinaram sobre aceitação, desapego e veracidade.


Eles chegaram, os 4 irmãos, e logo viraram a novidade da casa. 
4 gatinhos de 3 meses, sapecas, dóceis, lindos. Lara se encantou. “Posso ficar com o amarelinho mamãe?”. Eu deixei. Na verdade eu sempre quis ter um gato, desses que ficam dentro de casa, dormem no nosso colo, nos fazem companhia no sofá. Quando criança era comum eu resgatar gatos na rua e levar para casa, mas nunca podia ficar com eles. Frequentemente as "visitas" ficavam por uns dias, eu cuidava e achava um lar para eles. Continuei fazendo isso até a vida adulta, mas nunca tinha tido um gato para chamar ‘meu’.

Aquele loirinho de olhos amarelos nos conquistou! Lara o amassava, beijava, apertava, dizia que amava. Chegava da escola e já ia perguntando “cadê o gatinho”. Quando o via sorria e dava pulos de alegria. Eu até tive que incentivar ela a dar um carinho extra pro cachorro, pra ele não ficar de escanteio. O gato era tudo! Com certeza seria um companheiro para nós! 

Então eu adoeci. Alergia a gato. Tentamos medidas de contenção, não pegar muito nele, proibir certos cômodos da casa, pentear, aspirador de pó.. Eu só piorava. A Alergia virou uma bronquite asmática. Eu nunca havia tido isso na vida. Teste sanguíneo pra rastrear a alergia, valores: 9,7 (acima de 3,5 considerado reação alta). 

Nosso coração, meu e do meu marido, pesou de tristeza, o gato teria que ir embora. “Mas e a Lara?”. Tínhamos medo da decisão, de contar pra ela, de magoá-la. Que arrependimento ter ficado com o gato! Os outros 3 foram com facilidade, mas agora ela se apegou ao “dela”. Como lidar com isso? Como evitar que minha filha sofra? --  Quando somos pais, queremos proteger nossos filhos do sofrimento. Sentimo-nos culpados por agora fazer ela passar por essa perda do gatinho.

Mas tudo na vida é aprendizado, e eu decidi encarar mais esse. Quando tempos atrás escolhi fazer um desmame noturno, o fiz pensando que eu precisava dizer SIM para mim, e que isso implicaria em alguns NÃOS a minha filha. E ao fazer isso eu também estaria ensinando ela que ela também tinha o direito de dizer não ao que ela sentia que passava do limite dela. 
Com o gato me senti na mesma situação. Eu não podia viver doente por causa dele, então mesmo que fosse dolorido para ela, eu precisava tomar essa decisão, e tentar transformar isso num aprendizado.
Muitas vezes nos deparamos com situações que remontam à nossa infância. Quando eu tinha 5 anos nós cuidamos de uma gatinha perdida durante 1 mês, eu me apeguei muito a ela, e um dia, voltando da casa da minha avó, cheguei em casa e ela não estava mais. Meus pais haviam doado ela, e por anos aquela memória me machucou. Então eu sabia que a primeira coisa que eu precisava fazer era permitir que a Lara participasse da despedida do gato.

Preparei o terreno por uma semana. Expliquei para ela o que era alergia, e que com a mamãe doente a mamãe não conseguia brincar com ela, que a mamãe ficava fraca, que não era legal ficar doente. Expliquei que era o gato que me deixava doente, mas que ele NÃO tinha culpa disso, que era um gato bonzinho e amado.


Então um dia tomei coragem e expliquei que o gato teria que ir embora, que ele ia morar em outra casa, e outras pessoas muito legais iam cuidar dele. Contei que na outra casa haveria um menino da idade dela que ia brincar com o gatinho, e eles seriam felizes juntos. 

O semblante dela mudou, ela parou pra me ouvir com seriedade. Ela entendeu a veracidade das minhas palavras. Desabou em um choro de lágrimas e soluços no meu colo. “Eu gosto muito do gatinho” – “Eu sei filha, eu sinto muito” – “Mas e se ele morar lá fora com o cachorro?” – “Mas e se você for num médico?”. E chorava!! Fiquei com o coração pequenininho, no meio do choro ela ainda tentava buscar argumentos que me convencessem que era possível ficar com o gatinho. Foi um choro sentido, por mim, e principalmente por ela, mas era inevitável, só me restava acolher. Mais tarde, no mesmo dia, ao sair de casa ela encontrou o gatinho e exclamou “oooownnn gatinhooo” e pegou ele no colo e abraçou.


Nos dias que se seguiram eu a lembrava as vezes que logo o gatinho iria embora, para um lugar onde cuidariam dele, igual aconteceu com os irmãos dele. Ela ficava triste por um momento, e passava. 

Algumas pessoas preferem inventar histórias sobre o que acontece, histórias que amenizam a verdade, tentando proteger a criança. Mas eu acredito que as crianças percebem,  é melhor falar a verdade, mesmo questões dolorosas, como a morte por exemplo. Crianças não precisam de grandes explicações nessa idade, mas precisam da nossa veracidade e acolhimento, e eu poderia dar isso a ela. Seria muito mais complicado elaborar uma fantasia para o sumiço do gato, e eu sabia, por experiência própria, que isso geraria um vazio não finalizado no coração dela.

Combinei com quem ia adota-lo que eu o levaria junto com minha filha, pois ela queria ver onde ele ia morar e eu achava importante essa despedida. Ela estava preocupada “o menino que vai ficar com ele não vai saber que o nome dele é Arthur!” – “A gente vai lá contar pra ele Lara”. E assim procedemos. Não fiz disso um grande evento, mas também não tratei como uma eventualidade. A preparei para partirmos e entramos no carro. Eu, ela e o Arthur, que se soltou da gaiolinha e acabou indo solto no carro.

Como todo gato, ele odeia andar de carro. Miava desesperado, olhava pela janela, miava um miado choroso. Lara estava curiosa com a situação, observava atentamente o comportamento dele, e fazia carinho nele quando ele se aproximava. “ôoo Arthur não precisa ficar assustado" - ela o consolou “... não precisa ter medo, você vai morar numa casa legal, vão cuidar bem de você lá”. Meus olhos encheram-se de lágrimas. Quanta sabedoria infantil! Senti tudo que ela, no auge de seus 3 anos e 3 meses, me ensinou sobre desapego, sobre despedidas, sobre a importância de falarmos sempre a verdade.  

Foi importante os dias de preparação, o choro, o luto sentido. Houveram vários momentos de choramingo dela “eu vou sentir muita saudade dele” L. Ao entregarmos o gatinho para seu novo dono ela espontaneamente falou “Oi , Eu sou a Lara, esse é o Arthur, ele é muito bonzinho”. Ficamos um pouco por lá e ao sairmos do apartamento ela simplesmente soltou de longe um “Tchau Arthur” e voltamos para casa. Todo aquele drama que eu temia não aconteceu.

Nesse dia eu reforcei em mim a convicção da importância de nunca ludibriarmos as crianças com meias verdades ou histórias maquiadas para amenizar um medo NOSSO de magoa-las. De forma infantil podemos transmitir a verdade, e aprender com elas sobre essa capacidade incrível que elas têm de compreensão e adaptação.

Aprendi que meu medo de partir o coração dela ao fazer uma escolha por mim, era mais um medo meu do que um problema real. Nas escolhas difíceis surgem grandes aprendizados. Teve choro, mas teve muito crescimento e carinho, e assim nossas crianças crescem se sentindo respeitadas.
Antes eu me arrependia de termos acolhido o Arthur, hoje vejo como um capítulo necessário no nosso aprendizado. Obrigada Arthur pelos 4 meses que passaste conosco! Você foi muito amado pela Lara!


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