terça-feira, 8 de outubro de 2019

Que bom que deu errado! – Por que eu amo a minha cesárea.


Que bom que deu errado! – Por que eu amo a minha cesárea indesejada:

Eu me tornei doula em 2011. Apoiei mulheres em suas buscas por partos respeitosos, humanizados, atualizados com as evidências científicas, e que levassem em consideração as particularidades de cada uma. Acompanhei partos hospitalares, domiciliares e cesáreas bem indicadas. Vi de frente a cirurgia, as camadas cortadas, os procedimentos invasivos. Aprendi os riscos de uma cirurgia na mãe e os prejuízos para o bebê que não seria massageado pelo canal vaginal respirando melhor na transição para o mundo, não teria contato com a microbiota benéfica para o sistema imune dele e todos os outros malefícios que podemos discutir em outro momento. Não preciso repetir aqui: claro que cesarianas bem indicadas salvam vidas e são bem vindas; é quando os benefícios da cirurgia superam seus malefícios, é quando ela se torna mais segura do que um parto fisiológico onde todo o possível já foi feito.

Eu seguia encantada pela beleza do momento, ver um ser humano chegar ao mundo, ver a potência e o desabrochar de uma nova vida e uma nova mulher. Os partos domiciliares eram particularmente especiais, a atmosfera de respeito, o ambiente acolhedor. Eu conhecia as evidências e sabia as circunstâncias em que um parto poderia ser acompanhado em casa. Eu, introvertida que sou, que amo meditar e ficar tranquila no meu canto, e que odeio hospitais (tanto por experiências da minha infância como por questionar o modo como nossa saúde é tratada no ocidente – por isso sou acupunturista) não poderia querer outra coisa para mim. 

Em 2011 na Marcha pelo Direito de Parir em Casa, Brasília

Quando eu engravidei decidi que minha filha nasceria em casa! Depois de seis anos assistindo vídeos de partos, escrevendo em meu blog ‘Morada Interior’, acompanhando gestantes maravilhosas nessa experiência única na vida, traduzindo as legendas para o documentário ‘Renascimento do Parto’ para sua pré-estréia e coordenando grupos de gestantes... Eu não cogitava nenhuma outra forma de nascimento respeitoso. 

O parto é um evento familiar, a segurança dele em casa para gestação de risco habitual e com equipe qualificada para atender é a mesma (na verdade um pouco mais seguro inclusive) do que a de um parto normal hospitalar. Eu não tinha medo do parto, tinha respeito, mas não medo. Eu tinha medo de hospital.

Chegou o grande dia! Com 41 semanas e 1 dia eu entrei em trabalho de parto, um dia depois de fazer uma acupuntura em mim mesma para um estímulo (cansada dos pródromos). O trabalho de parto foi longo, arrastado. Tive tudo que eu queria, penumbra, uma doula, minhas músicas, açaí entre contrações, chuveiro, bola, caminhei, me agachei, entrei na piscina de parto (maravilhosa!), até mesmo cochilei. Não vou falar do processo nem da dor (isso eu conto no meu relato de parto). Mas em algum momento minha filha ficou com taquicardia, em algum momento a progressão foi parando sem que as contrações diminuíssem, em algum momento apareceu mecônio. Eu sabia o que isso significava. Era o fim do meu sonho, era o fim do meu parto. Deu lugar à adrenalina, o medo, a pressa.


Tudo foi feito com segurança, médica foi na frente, anestesista chamado, caminho pro hospital calculado. Partos domiciliares exigem um plano B. Uma assistência correta e um plano B ajudam a garantir que tudo ocorra dentro da segurança. 

Ali foi dor, dor emocional, dor física, dor na alma, dor... Hospital, pessoas olhando, cardiotoco, batimentos cardíacos alterados, maca, enfermeiras grossas, acesso venoso, picadas, solidão, luz branca na cara, frio, gelado, tremedeira... A cada corte a faca na minha mente, a cada puxão a lembrança das cirurgias que vi de frente, eu aceitei, claro, é o que fazemos. Meu coração e minha cabeça estavam com minha filha, que eu desejava tanto ter nos braços. E ela não veio, não veio para mim. Sequer a vi. Queria pega-la de dentro de mim em minha casa, mas a levaram. Foram os segundos mais silenciosos da minha vida. Mas ficou tudo bem! 


Frustrada pelo desejo não realizado? Claro, como qualquer criança também fica por não ganhar o que quer. Chateada com o plano ter mudado tanto? Com certeza. Uma mulher triste com a cesárea indesejada é uma mulher triste com a experiência não vivida, a experiência que ela criou em sua mente centenas de vezes, viu nas outras, almejou para si, dedicou estudo, tempo, energia, investimento emocional... Ela queria sentir cada pedaço de tudo aquilo, e sabe que nunca mais saberá, não com aquele filho. O corte da cesárea é o corte do vazio que fica...

Demorou um tempo para elaborar, foi um processo, como todas as coisas na vida que são importantes para nós. De uma forma ou de outra, parindo ou não parindo, todas aprendemos que controle é algo que não temos. Todas aprendemos a aceitar e a dar nosso melhor dentro do que conseguimos. Demorou, mas aceitei, não apenas aceitei, amei. Sim, eu amo minha cesárea. Não por que me deu uma filha nos braços, mas eu amo a experiência que vivi. Era tudo que eu não queria, e o mundo dá voltas e joga no nosso colo aquilo que precisamos, e a isso sou grata!

Para todas as mulheres ficam “E SES”, e se isso e se aquilo, e o que eu faria diferente. E algumas coisas faríamos diferente mesmo! E tudo vira aprendizado. Todas as mulheres tem “e ses”, até mesmo as que pariram como desejaram. Eu sei que dói, e a cura para isso não é cavoucar a ferida ou procurar culpados, é falar, falar da experiência, como você se sentiu, conversar com alguém que te escute e não faça você se sentir ingrata pela cirurgia que trouxe seu bebê. Não é sobre o amor pelo bebê, é sobre a experiência profundamente corporal, íntima e psicológica que nos revirou por inteira e deixa marcas que precisamos lidar ainda.

Eu amo minha cesárea! Amo como eu sinto que ela me transformou em uma pessoa melhor. Como ela me faz acessar a dor das outras mulheres com mais facilidade, como eu sinto que entendo melhor, humanizo. Amo minha cesárea e continuo defendendo o direito das mulheres parirem com respeito, continuo alertando para os prejuízos que uma cirurgia traz para a mãe e bebê! “Ah você fala isso por que aposto que pariu, não sabe do que estou falando” – “Eu tive uma cesárea... eu sinto sua dor...”





Eu amo o potencial transformador que a cesárea se tornou para mim. Para mim, na minha experiência pessoal, no meu psicológico! Você vai encontrar suas transformações também. Sua cesárea desnecessária pode te transformar em ativista, doula, te colocar em contato com outras reflexões, rever valores, te unir a pessoas que você não imaginava que estaria andando junto antes, ou refletir sobre tuas dores mais profundas. E se dói, fale, e busque terapia, faz muito bem!

Eu amo minha cesárea por que se eu tivesse tido um parto liso, domiciliar, ‘fácil’, lindo, como eu desejava, eu odiaria a mim mesma! Eu poderia me tornar aquela pessoa ‘entitulada’ que se acha melhor por que teve um ‘parto dos sonhos’, e acha que a mulher tem o parto que ‘merece’. Não acredito em meritocracia, acredito em generosidade, informação, acolhimento e compaixão. Eu não ia gostar de virar alguém que diz “vai lá e pare! Toda mulher sabe parir! Eu consegui, você consegue! Parir é simples” – É e não é. É fisiológico, natural, acontece. É simples, é animal, é parte da vida. Mas é complexo (e no Brasil, é difícil também). 

A Vida me salvou de virar uma ativista arrogante! Eu agradeço! A Vida me jogou no turbilhão do mar de ressaca para que eu soubesse que eu sei manejar as velas do meu barco! Para muitas mulheres, o parto é o grande medo! Eu tinha medo da cesárea, do hospital! Encontrei minha força quando tive que enfrentar o meu maior medo! Tudo que eu menos desejava foi tudo que aconteceu! Eu não precisava de um parto troféu! Eu precisava de uma cesárea! Parir seria fácil demais, simples demais. Eu precisava de uma cesárea, e por isso eu a amo.


*** meus desejos de que toda mulher possa encontrar seu local de acolhimento, aprendizado e cura, em cada experiência que viveu <3


(Agradeço às doulas e consultoras de sono e amamentação Juliana Santini e Erica Lima, de São José dos Campos, amigas da Roda BEBEDUBEM, que tiraram de dentro de mim isso)

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