sábado, 8 de setembro de 2018

"Mamãe, eu vou morrer um dia?!" - A criança, a morte e o medo de morrer

"Mamãe, eu vou morrer um dia?!"
 A criança, a morte e o medo de morrer

Eu geralmente falo com naturalidade sobre a morte com minha filha. Ela tem três anos e muitos achariam cedo demais para tocar no assunto. Não é um assunto que eu “puxo”, mas ele acontece e eu respondo com verdade. “O que é isso?” ela aponta para um refrigerador no mercado “são porquinhos mortos filha, algumas pessoas comem eles, nós não, preferimos eles vivos”; --- Ela anda numa fase muito ligada a roupas, adora olhar seu armário de vestidos “... e esse vestido mamãe, quem me deu?” – “Esse vestido é especial, sua bisa que fez com as mãos dela, pra você, ela te amava muito” – “a bisa que morreu mamãe? Por que ela morreu?” – “por que ela estava muito velhinha, é normal morrer, é algo que acontece.”
Não trato a morte como algo mórbido. É triste, claro. Mas penso que a perda de contato com a realidade ‘normal’ da morte, bem como do nascimento afastou-nos de uma oportunidade de encarar isso com menos dor. Artificializamos o nascimento, alguns hospitais chegam a ter taxas de 98% de cesarianas. Não conseguimos mais olhar pra uma gestante e para um parto como algo absolutamente normal que acontece, temos medo, queremos controlar. O mesmo com a morte. Não queremos falar a respeito, tentamos controlar, não aceitamos, e com isso tudo acabamos por sofrer mais. Sufocamos a dor, nos enchemos de tabus, enterramos os sentimentos, adoecemos...
Quando eu era adolescente por um tempo eu fiquei muito interessada no assunto “morte”. Fui ler o livro tibetano dos mortos, as teorias do espiritismo, da teosofia, do hinduísmo, do cristianismo. Eu queria entender como cada um encara a morte, e o pós morte. Se todos nascemos, todos morremos. Não falar sobre isso não fará doer menos, pelo contrário. Alguns encontram conforto espiritual, outros não; mas precisamos de mecanismos para lidar com o luto. Escrevemos cartas de despedida, temos sonhos simbólicos, arrumamos quartos, enterramos. Tocamos a música favorita do falecido, montamos um mural de fotos, contamos uma história sobre seus feitos em vida. E o que fica de importante é tudo que aquela pessoa foi em vida para nós.
Eu sempre falei com naturalidade de morte com minha filha. Ontem ela me surpreendeu com uma dúvida e dor sinceras. “Eu vou morrer um dia mamãe?” Isso foi um teste! Minha vontade era abraçar e dizer “não vai morrer filha”. Mas não podia mentir”. Meus olhos se encheram de lágrimas e disse “vai filha, um dia você vai morrer, mas vai levar muito tempo, não se preocupe” (claro, eu não sei disso, mas espero que ela morra de velhinha, igual sua bisa, e tenha uma vida cheia de significado!)
Ela chorou, ela chorou sentida, lágrimas absolutamente sinceras e tristes. “Eu não quero morrer mamãe”. – Ela tem 3 anos e 7 meses, me peguei pensando se eu deveria ter mentido...

Coloquei ela no meu colo e senti suas lágrimas pingando, seu corpo curvado, entregue a um sentimento real. Lembrei-me de uma palestra que vi do velejador Amyr Klink, em que ele conta como a morte é o maior dos professores no mar, pois você aprende (a velejar, a ler as estrelas, a economizar comida, a manejar a vela, o que for) por necessidade de sobrevivência. A iminência da morte torna a vida um aprendizado extremamente presente e real. Não preciso citar aqui histórias lindas de quem recebeu um diagnóstico terrível e passou a “aproveitar a vida” muito melhor. O cinema é cheio dessas histórias. Eu pessoalmente nunca vivi isso, posso apenas cogitar...
Enfim! Lembrei-me das palavras de Amyr e embalei minha filha no meu colo. Enchi seu cabelo de beijos e contei pra ela todas as coisas lindas que ela poderia fazer da vida dela. E que morrer era normal, mas que ela não precisava ter medo. Que ela tinha muito a viver ainda e que estaríamos juntas. Dei exemplos de tudo que ela poderia ser na vida, e que ela cresceria e se transformaria numa mulher incrível, e que ela ainda tinha muito a aprender e viver, e como eu queria que ela tivesse uma vida muito boa e cheia de amor, pois ela já é muito amada. Ela soluçou e mais lágrimas caíram na minha perna “eu não quero morrer mamãe”. E eu abracei ela forte e disse “eu sei filha, eu também não” e a chamei pra aproveitar a vida que temos hoje e fomos passear!
A tristeza passou, foi um momento, foi um instante que ela tomou consciência de que a morte existe. Suas lágrimas foram tristes e genuínas. Eu não saberia inventar mentiras para ela. Talvez seja cedo demais ela pensar sobre isso, mas simplesmente ‘surgiu’ o assunto. Espero que ao entender como todos morremos, ela saiba preencher-se de vida em todos os momentos e experiências que ela tiver. E que ela aprenda muito com cada oportunidade dessa vida. Quando a gente morre, o que importa é a vida que tivemos, e tudo que nos transformou e ajudamos a transformar.

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